sábado, 27 de abril de 2013

DIA DAS MÃES - 2013!


((no próximo dia das mães estarei muito longe - aqui fica desde já minha homenagem))
Mamãe

De repente o telefone, e do outro lado a notícia: o nosso pai não anda bem. Comeu uma feijoada (muito) e não lhe fez bem. Dá até uma vontade de rir: é claro que uma feijoada não pode fazer bem, para alguém com mais de 80 anos, ainda mais sabendo o apetite que ele tem!
Parece, à primeira vista, as estripulias de alguém, de bem com a vida, mas que exagerou na dose. E, é!
As noticias continuaram, menos freqüentes e nem sempre boas. Até que chegou algo mais concreto: ele foi internado! Teve que ir pra outra cidade. Então é mais sério. Três meses depois ele não estava mais, entre nós. Alguns não o viram sequer umas três vezes nesse período. Eu tive a graça, uma espécie de intuição que não se explica, de ter ido vê-lo quase todos os meses naquele ano. Nunca havia sido tanto e nunca conversei, saí com ele tantas vezes (Mundo Novo, Santa Maria, estrada do Santa Maria).
Apesar de naquele momento não reinar nada, já estava me preparando para a grande despedida. Naquelas conversas repassamos inúmeras passagens aventureiras e quase catastróficas, como aquela em que um temporal nos surpreendeu, em uma cava fechada, em algum lugar, quase chegando no Mundo Novo e muito tarde da noite tivemos que abandonar tudo, nos recolher na casa de alguém e só voltar no dia seguinte para ver e consertar a situação! É claro que ele falava com orgulho de tudo aquilo.
Dez anos depois as coisas são muito diferentes.
Nossa mãe está aqui, forte fisicamente, com muita energia, quando caminha tem-se dificuldade em acompanhá-la, mas a cabeça...! Sim na cabeça, parece existir um enorme vazio ou melhor, uma fábrica poderosa de invenções e criações de uma outra realidade, de uma realidade que nos ultrapassa, que vai além da nossa compreensão.
Hoje é um acidente, ela fala da queda de um cavalo, em uma estrada que deixou de existir há 50 anos,  ou um medo de alguém, que sobre ela não tem a menor autoridade, isto há mais de 60 anos(o seu pai). Mas ela menciona como se tivesse acabado de acontecer.
O que afinal aconteceu com o tempo? -Parece não existir nem antes e nem depois.
Eu queria no fundo falar com ela (todos nós queremos, tenho certeza) sobre coisas simples, de agora, do seu dia a dia e não de memórias que nem conheço. Porquê? -Porque a memória esqueceu do que ela acabou de falar, do nome de uma filha que está à sua frente ou do meu filho, que ela acabou de ver? Mais do que o irmão dela, que ainda quase criança, acabou de cair e se machucar ou do seu mal estar, com a mãe dela, gostaria muito mais que ela trouxesse o que aconteceu com ela no ano passado, quando me visitou em minha casa ou que me falasse de coisas  que tenham a ver com ela e comigo, como quando eu ainda era pequeno.
Não, tudo isso ficou apagado. Por mais que eu tente, ela não consegue ligar o presente com o que ela viveu. Existe um vazio, uma interrupção, uma lacuna que ela não consegue transpor. Que parte de seu cérebro está interrompida? Não teria como ir lá, ligar as pontas, mesmo correndo o risco de apagar aquilo que está lá longe, lá no inicio.
Melhor seria se ela pudesse gravar os seus últimos tempos, tudo aquilo que faz parte da nossa história comum. O resto, sei que é importante pra ela, mas não faz muito mais parte de nós.
Hoje, por exemplo, ela fala de um acidente: o cavalo caiu, ela se machucou, nada muito grave, mas teme que sua mãe fique brava com ela ou que o nosso pai brigue com ela. E se tudo isso, na sua cabeça, for verdade! Mas é verdade! Como deve ser o seu sofrimento vivenciando tudo isso! Uma quase tragicomédia composta de fatos graves, sérios, difíceis, duros de suportar, o sorriso do início pode acabar em lágrimas: basta uma concentração maior e profunda nos fatos que estão sendo relatados. A pergunta que se faz é: até que ponto tudo isto está na sua imaginação apenas, não fazendo parte da sua realidade, de sua vida? Na hipótese de ela, acreditar piamente, internamente pode estar apavorada, destruída! Como saber, distinguir uma situação da outra?
O fato em si importa menos do que o que ele representa na sua mente. O que ela credita é mais sério do que o que de fato existe, se é que existe algo.
Assim, se por um lado ficamos felizes em saber que é pura fantasia, de outro nos entristece, em ver que ela vive tudo aquilo como real.  Tudo isto nos deixa tristes, com pena, quase revoltados por não poder oferecer nada que venha aliviar este drama, amenizar este sofrimento.
Ainda que nada de grave esteja acontecendo, saber que na sua mente isto é fato, concreto, faz doer. Cabe aqui se perguntar: porquê? A que deuses podem servir esses sofrimentos?
Por outro lado, porque esta necessidade incessante de ir para uma outra casa que não existe, que ela mesma nunca acha? Não poder acalentar esse seu desejo é uma dor que não cessa, uma ferida que não cicatriza, um chamado nunca atendido, um pedido sempre recusado. Quando o nosso maior prazer é atender tudo que ela anseia, depois de tudo que ela já fez por todos nós.
 Ate que ponto isto afeta o seu entendimento das coisas? Nunca vamos saber, não tem como perguntar? Ela jamais entenderia a pergunta. É muito complexo para o seu entendimento.
A linha do tempo pra ela, emaranhou-se de tal modo, como se não houvesse mais, nem antes, nem depois, passado ou futuro. Os tempos se confundem, assim como se confunde a sua visão da realidade ou das coisas que estão à sua volta.
O que está ali é nossa mãe, está tão igual ao que sempre foi, mas o que realmente nos liga a ela, aquilo que faz com que ela seja ela mesma pra todos nós, parece ter ido embora. A lembrança na sua mente, que faz de cada um de nós filhos, netos, bisnetos, foi apagada, extinta. Ali tem um corpo, que ainda ri, se alimenta, anda, mas que não reflete o brilho de mãe, de avó, que consiga diferenciar as pessoas umas das outras. Um corpo sem memória, sem passado e sem lembranças. Na maioria do tempo só lhe restam lembranças que não são as nossas lembranças. Pra que serve? – Resta um consolo: imaginar que possa servir para o seu conforto, para a sua tranqüilidade de espírito. No momento é o que mais importa.
Aqui uma raríssima oportunidade se nos apresenta para poder ajudá-la: estarmos lá, como ouvintes atenciosos e solícitos de suas histórias, muitas que são só dela, da sua imaginação e que ela precisa, desesperadamente, passar adiante, comunicar, partilhar.
Para isso precisamos estar presentes.
Bom final de semana