domingo, 16 de novembro de 2008
Livro do Papai - Transcrição - Primeiras Páginas
LIVRO DO PAPAI
Escrito provavelmente no início de 2000
Começo da minha Vida
Eu nasci em Guapé na casa da minha vó, quando o relógio da matriz tocava para a missa do dia, doze e meia. Foi a hora que vim nascer no mundo. Em 1.1.1916. Naquele tempo as mulheres, quando ganhavam neném, guardavam um resguardo. Me levaram para a roça quando tinha seis meses. Sofri sarampo, enfraqueci muito com muito remédio. Tinha de tomar leite. Minha mãe me deixou no colo do João Lau, no rabo do fogão e foi tirar leite para me dar remédio. Quando ouviu um choro, veio correndo. Eu estava debruçado nas brasas. Meu pai veio, deu uns tapas no João Lau. Minha mãe tratava de queimadura com óleo de linhaça. Quando o cascão da ferida estava arrebitando minha mãe não teve coragem de fazer a limpeza e pensava que meu olho estava ferido. Chegou uma vizinha, pôs água na bacia e pediu a mulher que lavasse a minha cabeça, tirou o cascão quando o olho apareceu perfeitinho. Minha mãe cuidou de cumprir a promessa que ela fez. Vivendo na roça minha mãe sempre nos levava à Semana Santa em Guapé, no Congo e no Moçambique. Quando eu tinha 6 anos sofri uma febre, eu e o João Lau. Minha mãe mandava buscar o pai dela. Ele tratava de medicina. Ele mandou apanhar uma lata de água no rego, pôs na bacia e banhou nós dois. Minha mãe quase ficou doida, tirando da bacia e pondo na cama. Pôs bastante cobertor, nos molhando a roupa duas vezes. A febre acabou de uma vez.
A Primeira Escola
Quando eu tinha oito anos, meu pai me pôs na escola no Grupo de Capitólio, eu e o João Lau, por um ano. José Honorato e a Cassiana brigavam muito. Um dia meu pai chegou e uma vizinha disse pra ele tirar a gente de lá. Fui estudar em casa com minha mãe e a Guiomar. Minha mãe foi em Guapé, arrumou um professor velho. Chamava Vitoriano. A escola era na casinha da desnatadeira. Ele passava deitado no banco. Um dia ele mandou eu tirar um bicho nele, eu contei pra minha mãe. Ela não falou nada, no outro dia bem cedo, minha mãe falou para um camarada: vai em Guapé levar o Vitoriano. Ela falou para o Vitoriano: um camarada vai te levar em Guapé, arrumei o senhor para dar aula e não para os meninos tirarem bicho no senhor. A escola continuou em casa. Quanto eu tinha dez anos eu sofri febre outra vez. Foi buscar um médico em Capitólio. Pedro, pai do João Pretinho é quem foi buscar. Foi a primeira vez que tomei injeção. Quando eu tinha dezesseis anos meu pai foi em Capitolio, encontrou um homem paulista, que estava escondendo da revolução. Meu pai contratou ele para dar aula pra nós. Eu o Mário, o Francisco, o Antônio e a Mariinha, a caçula. Demorou uns dias começam as aulas. Quando começou só deu aula um mês. Nós estudávamos o dia inteiro. De noite ele ensinava-nos a rezar. Ele falava que quando ele fosse embora eu continuava as aulas. Vencendo um mês, meu pai pagou ele quarenta mil reis. Ele falou que ia em Guapé comprar uns livros, meu pai ofereceu dinheiro adiantado, ofereceu animal e ele não aceitou nada. Ele saiu de madrugada para o outro lado. Viram ele subindo a serra do retiro do José Evaristo, nunca mais nós vimos o homem.
O Primeiro Casamento
Quando eu tinha vinte um anos e meio eu casei com a Luzia, dia 24 de junho na igreja e no civil dia 29 de junho de 1938. Dia 16 de abril nasceu o menino. Fiz uma casinha de esteio e depois parede de pau a pique e assoalho. Mudei pra ela dia 30 de julho de 1939. Morei nela agosto, setembro. Quinze de outubro a Luzia ficou doente, mandei buscar um médico em Guapé, Dr. Coelho. Ele falou, tem que levar ela pra Guapé. Meus irmãos arrumaram o carro de boi, eu não saia da beira da cama dela. Nos saímos a meia noite, quando o dia estava amanhecendo eu estava chegando em Guapé. Nos chamamos a mãe dela, que morava em uma fazenda em Boa Esperança. Dia dezessete, à meia noite a mãe dela chegou. Uma hora do dia dezoito ela morreu. Ela completou dezessete anos no dia dois de outubro. Pensei que nunca mais tinha “caminho para mim viver mas Deus nunca esqueceu de mim. Mim deu outra pra mim viver”....feliz minha mãe pegou o menino para criar, eu continuei morando sozinho, trabalhando muito. Em quarenta e dois casou o Mario, meu irmão. Eu vendi a casa pra ele e voltei a morar na casa do meu pai. Eu, o Francisco e o Antonio tocávamos toda a lavoura de sociedade. Em quarenta e quatro eu fui com a comitiva do “beja” buscar uma boiada em Pihumy que vinha de Araçatuba, mil bois. A boiada não tinha chegado, eu fui para a casa do tio Frederico. Pousei e amanhecei com uma febre enorme. Meu tio chamou o médico, o Dr. Osvaldo. Ele falou que era febre paratifo. Não vi rumo da boiada, nem de boiadeiro. Meu primo Vico levou o burro para o pasto dele, fiquei três dias de cama. Chovia muito e um dia minha tia “aninha” me tratou como se fosse filho dela. Ela me tratava de zézé da comadre. Quando me levantei naquela magreza minhas primas riam de mim, do jeito de andar. Chegou o Marcilio Abreu com um acarta do Chiquinho Ávila, farmacêutico falando pra eu vir embora com o Marcilio. Eu tinha no bolso uma nota d equinhentos reis, eu falei com meu tio, o senhor me da cinqüenta reis pra eu levar e o senhor fica com os 500 reis para acertar o médico e a farmácia, quando eu mandar buscar meu burro eu mando mais dinheiro. Saí com o Marcilio num fordezinho de mola de aço. Chegando em Capitolio com uma tempestade o Marcilio me agasalhou pra eu não molhar e pousamos na pensão. De manhã nós saímos naquela estrada ruim. Dobrando o alto da Batalha avistei o Rio Grande. Estava muito cheio. Cheguei em Guapé na casa do João Lau, meu irmão. Ele também tinha sofrido a paratifo. Fiquei oito dias na casa dele e depois fui para a roça. Isto foi em janeiro de 1944, em maio de 1945 eu comecei a sofrer da vista.
Viagem para Campinas
Fui para Campinas. Fui a pé até a Barra Velha, tomei um caminhão que levava creme pra Passos. Cheguei duas horas da madrugada e fui direto pra estação, tomar o trem às três horas. Cheguei em Campinas as cinco horas da tarde. Quando sai da estação aquela porca de agenciador gritando mas eu não liguei. Chamei meu maleiro e mostrei o cartão d apensão mineira. Ele pegou minha mala, colocou na cacunda e saiu depressa e nem olhava pra traz e eu com medo de perder ele. Chegou na porta da pensão, ele desceu a mala e me mostrou a placa. Perguntei quanto era: treis mil reis. Pensão Mineira na Andrade Neves. No outro dia o agenciador me levou no médico Dr. Ataliba Camargo. Ele falou que era inflamação no nervo do olho. O nervo ia secar, acabava a dor mas acabava a vista. Fiquei tratando durante dois meses.
Em maio de 1945 comprei a Fazenda Dourados em sociedade com o Lindolfo. Ele “ mas “quiabou” mas eu agüentei o negocio sozinho. Coloquei outros sócios, Antonio Soares, José Antonio mas me desgostei. Eu tinha comprado uma invernadinha e fiquei na beira do rio. Setenta e três alqueires eram muito pra mim. Dei sociedade para o Domingo Evaristo, meu cunhado. Fiz a divisa com cerca de 4 fios de arame, com mourões de amoreira. Arei com arado de boi. Plantei milho, feijão, arroz. Quando estava perto de colher eu troquei com o Domingo pela fazendinha dele. Ele me voltou dezessete contos. Esta permuta foi feita em 11 de maio de 1946. Fiz um crioulo morar na fazendinha, o nome dele era João Bertolino.
Morte do Juquinha
Na noite de nove para dez de agosto meu menino ficou doente. De manhã cedo eu e minha mãe saímos com ele par ao Guapé. Chegando na casa do José Garcia, mandei chamar o médico, Dr. Coelho e ele veio examinar o menino e disse que era tétano. Em Guapé não tinha antitetânica, mandei o Antonio Martins buscar em Capitolio de cavalo. Viajou a noite inteira, chegou cedo com o remédio mas não adiantou nada. No mesmo dia ele morreu, dia dez de agosto de 1946, com sete anos e vinte quatro dias.
Trabalho em São Paulo
Entreguei a fazendinha para o crioulo olhar dia vinte e seis de agosto e saí num caminhão que levava creme para o Carmo, em cima das latas. Pousei no hotel do José Matilde e quatro horas da madrugada eu sai no ônibus. Pegar o trem de ferro em Guaxupé, trem que sai de Muzambinho. No trem eu encontrei um conhecido, Vovô do Viana, (ilegível). Chegamos em Cruzeiro dez horas da noite.Pousamos, no outro dia cedo pegamos o ônibus para Guará e em Guará pegamos o bonde elétrico até Aparecida. Fiquei 4 dias. Dia 31 de agosto eu fui para São Paulo. Saí as duas horas da tarde. Fui na Central. Cheguei as sete horas da noite na estação do Norte, hoje estação do Brás.Pousei e no outro dia fui para São Miguel Paulista. Procurei quarto, pousei, no outro dia dois de setembro em me apresentei no escritório da Nitroquimica. Passei em todos os exames e depois do meio dia eu trabalhei na companhia. Trabalhei o mês inteiro, tinha cinco por cento de bonificação. Mas eu só tirei o mês de outubro. Eu andava muito. Fui para Santos, nadei na Praia do Gonzaga. Meu companheiro, José Ambrozinho. Eu trabalhava como pintor mestre reformando a casa dos chefes. Eu já era pintor. Em janeiro me mandaram para Mogi das Cruzes pintar a Fazenda Rodeio. Eu gostei muito, lá tinha vaca de leite, o administrador me perguntou se eu tinha medo de pousar sozinho, falei que não mas ia pousar com os camaradas no barracão. Pôs minha cama numa casinha toda confortável perto da casa grande que eu ira reformar, a casa onde os chefes iam descansar. A chave da casa grande ficava comigo. Eu pagava pensão na casa de dois velhos. Pagava dez mil reis. A companhia descontava cinco na minha conta, preço do restaurante. Outros cinco a companhia pagava. Lá eu consegui uma licença para ir ao Rio, o Zé Brinquinho estava lá no Regimento Sampaio. Fui em Niterói conhecer, antes de fazer a ponte. Isto foi em janeiro de 1947. Junto comigo andava um crioulo aqui de Guapé Chamava Nei. Voltando para São Paulo continuei trabalhando na fazenda Rodeio e terminamos a casa grande e fui reformar a casa do administrador. Ele se chamava Raimundo e a mulher Aparecida. A primeira vez que telefonei naqueles telefones de canudo na parede. Fiquei dois meses na fazenda Rodeio. Terminamos e voltei para São Miguel Paulista em março marquei contas, eu ia para o Rio Grande do Sul.....(ilegível) falei para meu companheiro, eu não vou mas vou em Guapé, despedir do meu pai e minha mãe porque eu se for lá á capaz de eu não voltar. Minha mãe fez novena pra São José.
A Volta pra casa
Vim embora, saí de São Paulo, posei em Passos, peguei um caminhão que vinha buscar creme em Guapé. Quebrou no caminho. Posei em Alpinopolis. Sai de Alpinopolis dia 18 de março, pousei na Vargem do Mizael e cheguei na minha fazendinha. Tinha um cavalo de meu pai na horta, fui no Bastião Evaristo, pedi um arreio emprestado e subi a serra. Cheguei no Zé Adelino com uma chuva enorme. O córrego encheu, tive que pousar e no outro dia saí e cheguei na casa do Mario. Ele falou eu vou com você, quando a minha mãe estava fazendo o almoço eu cheguei. Era dia de São José. Todos ficaram muito satisfeitos com a minha chegada. Meu pai saiu contado para os vizinhos que eu tinha chegado. Logo pegou a chegar gente de fora pra me ver. Naquele tempo ninguém viajava, quando saia um era uma novidade. Meu pai não queria que eu trabalhasse. Era só para administrar mas eu peguei firme, comecei a vida de novo. Comprei um cavalo e logo troquei em uma mula. Na casa do meu pai trabalhava doze horas por dia e nós também. No corte de cana pra fazer rapadura. Nós levantávamos as duas da manhã e trabalhava até tarde. O dia de trazer rapadura em Guapé saía muito de madrugada e esperava s vendas abrirempara entregar a rapadura. Na época d alimpa de pasto sempre chovia muito, mas nós não escondíamos da chuva. Tinha uns camaradas que agüentavam, outros iam embora. Na fazenda de meu pai fazia rapadura, fazia polvilho, tirava leite, desnatava e vendia oi creme e o soro engordava porco, que era vendido em Guapé. Levava no carro de boi. Gastava seis horas de viagem, tinha três léguas. Tinha que ir de madrugada senão o sol esquentava muito e os porcos morriam. Nós íamos em Guape a cavalo. Se chegava mais tarde um pouco meu pai perguntava se a missa estava mais comprida.
O Casamento com a mamãe
Um dia eu fui em Guapé, um domingo e encontrei a Aparecida. Ela ia casar mas conversamos..(ilegível) ...mais agradável...Ela falou que sim...que se ela casava comigo. Eu perguntei se podia pedir em casamento, ela disse que podia, eu perguntei quem podia pedir, ela falou o tio Domingo, eu falei pode esperar. Falei com o Domingo e ele foi pronto. Marquei o di delle e escrevi pra ela. Entreguei a carta pra ele e falei primeiro entrega a carta para a Aparecida e pergunta a ela se pode pedir mas é para trazer a resposta. Lá o homem quando não aceita casamento ele fala que vai perguntar o burro, mas quero a resposta, mesmo que for do burro, a respeito foi para mim...(ilegível). No domingo seguinte eu fui a Guape, terminada a missi eu fui atender o chamado. Quando eu estava no Campo do Zé Baio encontrei o homem. Eu falei o senhor mandou falar pra mim e lá eu ia. Ele disse pode chegar as mulheres estão lá. Mas eu falei o que eu vou fazer com as mulheres, não revolve nada. Ele disse: eu vou aqui na Jacutinga e volto logo. Eu cheguei lá, jantei, eles querendo soltar a minha mula mas não deixei. Falei eu vou embora. Tarde da noite chega o homem. Entrou para dentro, conversei um pouco. Falei eu vou embora. Ele falou você não vai soltar a sua mula. Aí pousei e no outro dia cedo peguei a mula, arriei. Entrei la dentro para despedir. Não falei emcasamento. O homem quando viu que eu não falava, ele disse o negócio que você mandou falar nós vamos aceitar. Então eu vou (ilgeivel). Vou levar os nomes de todos, vou tirar a licença e a medida da aliança. Marcamos com o prazo de um mês. Eu fui em Pihumy fazer as alianças. Eles falaram com o Padre João, que mandou avisar que ia para Santa Catarina dia 25 e vai ficar um mês. Tinha que fazer o casamento antes dele ir ou depois que voltasse. O homem me perguntou o que eu queria, eu falei então fazemos antes dele ir, está tudo pronto. Mas tinha só quinze dias, foi nosso casamento dia 24 de julho de 1948. Ajustei o Vadinho Ávila par anos levar ao Pontal, num fordinho de mola de aço. Fui eu, aparecida, a Maria do Juvenal, com três filhos e o José do Antonio Evaristo. Foi pela linha até o Pontal. Depois desce a linha, segue pela estrada, foi até o Areião. Tivemos que chegar a pé. La tinha muita gente esperando. Meu pessoal também estava lá. Foi uma janta boa. Era em uma sexta feira. Posei três noites. Segunda feira d emadrugada nos fomos para a casa dos meus pais. Logo comecei uma casinha na beira do rio, perto da mina. Fiz a casa de adobe, de chão, quatro cômodos.
O Nascimento do Lau
Lá onde o Lau nasceu em um de junho de 1949.
....continua....breve....
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3 comentários:
NOssa, qta história!!! Mto emocionante!
Valeu, querida sobrinha. É claro que estas histórias têm muito mais sentido para nós, os filhos, que muitas vezes ouvimos de nosso pai alguns trechos. Mas existem também revelações que tocam o coração como aquelas sobre a 1a. esposa, a morte do filho e o penoso pedido em casamento. Um beijo. Law
O mais interessante são os detalhes que o vô não esqueceu ao escrever esse memorial, dia da semana, o clima, etc. Ele descreve tudo de uma maneira que nos faz imaginar a cena e isso torna a leitura ainda mais emocionante. Imagino vocês, filhos (assim como você disse, tio Law) que ouviram algumas partes da boca dele. Grandes recordações! Abraços.
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